D’allora innanza dico che amore segnoreggiò la mia anima*
Beatrice Portinari, a Beatriz real, além do próprio Dante, é a figura central deste libreto de poemas melancólicos que trata, sobre um fundo autobiográfico, da passagem da idade juvenil e da transformação do poeta entregue ao sentimento amoroso à percepção poética de sua existência.
Era uma época complicada, sangrenta e cheia de batalhas pelo poder nas diversas regiões da Toscana e da Itália, como um todo (segundo Carlos Alvar, catedrático em literatura medieval na Universidade de Murcia – Espanha – “el río Arbia se tiñó de rojo.”) e o mergulho do jovem Dante na experiência da palavra escrita poeticamente era sua tábua de salvação, um claustro em aberto em que se permitia descortinar à “realidade ideal”, aquilo com o qual sonhava em suas percepções de rapaz apaixonado e que jamais viriam se concretizar.
Beatriz era uma menina rica, filha de um comerciante influente, e tê-la como esposa significaria, talvez, no plano prático, uma vida calma e próspera numa cidade que prometia pouco aos mais humildes e permitia menos, em termos de futuro, aos que não pertenciam às classes abastadas. O poeta, filho de um funcionário público servente da baixa nobreza, não poderia casar-se com ela, mas não era ingênuo, mesmo jovem sentiu que estava apaixonado, embora não fossem só estes os motivos que o levaram a tecer em palavras os versos que prenunciaram a gloriosa mulher que apareceria no Paraíso de sua Comédia.
Estava sinceramente apaixonado pela menina e as diferenças sociais eram mesmo um empecilho à realização deste desejo. Mas, no plano ideal, como convém aos grandes poetas que antecipam a concretização de suas mentalizações – potência/ato – Beatriz se converte pouco a pouco no seu agente de salvação. Ele se propõe dizer dela – “o que jamais fora dito de outra mulher“, frase que encerra um elo entre La Vita e a Comédia, duas obras que se complementam e se esclarecem mutuamente em muitos aspectos, formando um sistema de ideias bastante coerente.
Quando se conheceram, em 1274, Beatriz teria oito anos e Dante nove. Só se veriam nove anos mais tarde, em uma igreja, e na mesma noite ele tem um sonho místico que marca sua vida e dá o tom do livro. É através deste texto que se pode ter uma idéia do desenvolvimento do poeta, de parte de sua vvida e de seus sentimentos pela menina. Ela, porém, morre aos 25 anos em 1290, e com o livro o poeta recordou as vicissitudes de um amor que não pode se extinguir mesmo depois de sua morte – terminou de escrevê-lo entre 1292 e 1294.
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Paraíso – Parte 6
vergine madre, figlia del tuo figlioumile e alta piú che creaturatermine fisso d’etterno consiglio, “Na forma de alva rosa imaculada aos meus olhos surgia a corte santa, por Cristo, com… Read more
Aos treze anos, já órfão de mãe – cuja imagem é recorrente na Comédia, protegendo, alimentando e cuidando de seu filho – malgrado as inúmeras dificuldades para estudar, Dante já se saía bem na leitura de textos bíblicos em latim, comuns ao Trivium acompanhados de leituras de versos de poetas vulgares famosos: trovadores provençais e franceses, sicilianos e sículo-toscanos. Bem cedo demonstrou sua inclinação para a poesia e a alta intelectualidade.
O livro é a história do amor de Dante por Beatriz e a narração se resume a 42 capítulos em prosa, onde também se incluem 31 composições em versos (cantos) com os comentários correspondentes feitos pelo próprio autor. É uma espécie de autobiografia escrita a posteriori (talvez de 1291 a 1294). O texto revela também uma seleção de poesias que escreveu quando jovem e nem todas parecem ter relação direta com Beatriz, escritos de quando começou a cultivar “l’arte de dire parole per rima” até 1924 data do possível ecerramento da composição do livro. Segundo Dante, Beatriz era a personificação do Amor e, como este, impulsionava-o a trabalhar de acordo com todas as virtudes e a buscar a perfeição total – amar equivalia a valer mais, de acordo com as idéias dos trovadores. O namorado se aproximava de Deus pela sua dama. Eis aí o valor moral e religioso da obra. O primeiro amor, o amor cortês, se converteu pouco a pouco em um amor contemplativo, que leva ao conhecimento da verdade suprema e de Deus. Graças a fluidez de seus escritos Dante supera seus mestres, os dois Guidos – Guinizelli e Cavalcanti.
Pequeno trecho em prosa
Introdução:
I – “In quella parte del libro de la mia memoria dinanzi a la quale poco si potrebbe leggere, si trova una rubrica la qual dice: Incipit vita nova. Sotto la quale rubrica io trovo scritte le parole le quali è mio intendimento d’assemplare in questo libelo; e se non tutte, almeno la loro sentenzia.”
Tradução.: I – “Naquela parte do livro de minha memória, antes da qual pouco podia se ler, encontra-se um título que diz: Incipit vita nova. Sob este título estão escritas as palavras que tenho intenção de transcrever neste libelo; e se não todas, pelo menos seu significado”.
TRECHO em verso
XX – Amor e Nobre Coração
(primeira parte)
“Amore e ‘l cor gentil sono una cosa, sì come il saggio in suo dittare pone, e così esser l’un sanza l’altro osacom’alma razional sanza
ragione.
Falli natura quand’è amorosa,
Amore per sire e ‘l cor per sua magione,
dentro la qual dormendo si riposa
tal volta poca e tal lunga
stagione.
Bieltate appare in saggia donna pui,
che piace a gli occhi sì, che dentro al core
nasce uno disio de la cosa piacente;
e tanto dura talora in costui,
che fa svegliar lo spirito d’Amore.
E simil face in donna
omo valente.”
Tradução livre
“Amor e nobreza de coração são a mesma coisa, tal como diz o sábio em sua canção e assim não pode ser um sem o outro como a alma racional sem a razão.
A Natureza o faz quando está enamorada,
Amor é seu senhor e o coração sua casa
dentro da qual dormindo repousa,
às vezes uma curta, às vezes uma longa
estação.
A beleza aparece depois numa discreta dama, que agrada tanto aos olhos que dentro do coração nasce um desejo do objeto que agrada;
e às vezes, dura tanto neste
que faz com que desperte o espírito do Amor.
E igual faz na mulher o
homem de valor.”
*De agora em diante digo que o amor se assenhorou de minha alma. II[I]1-2-7.
(Dante Alighieri in Vita Nova)