O Mestre tradutor e “inventor” de Sócrates e a polêmica.
Busto de PlatãoPlatão nasceu em Atenas em 428 a.C. e era descendente de família da antiga nobreza – Sólon, por parte da mãe, e do Rei Crodo por parte de pai. Pouco se sabe de sua educação, mas aos 20 anos frequentava Sócrates e foi seu discípulo até 399 a. C. ano da morte do mestre. Por ser de família aristocrática pensou em se tornar poeta, mas acabou rasgando seus poemas depois que conheceu Sócrates. Quis também seguir carreira política, e o próprio conselho dos Trinta Tiranos (oligarcas que tomaram o poder, dentre os quais seu primo Crítias) o convidou para participar no governo, mas ele discordava daquela política, e a condenação de Sócrates à morte – para Platão o mais justo e mais sábio dos homens – foi um marco decisivo em sua vida.
“Vi que o gênero humano não mais seria libertado do mal se antes não fossem ligados ao poder dos verdadeiros filósofos, ou os governantes do estado não fossem tornados, por divina sorte, verdadeiramente filósofos.” Só a Filosofia pode realizar uma comunidade humana fundada na justiça, essa parece ter sido a máxima de Platão, um pensamento hoje visto por alguns estudiosos como reducionista porque aparentemente pretendia impedir ao homem simples decisões sobre sua vida, regulada e definitivamente atada aos desígnios dos deuses, ou da vida da cidade (Atenas governada por tiranos) em claro antagonismo à democracia.
Essa parece ser uma contradição platônica, há um caráter dúbio nesta afirmação. Dizer que a divina providência poderia tornar um homem simples em filósofo – portanto, em um pensador autônomo, capaz de debater os destinos da vida e da cidade em pé de igualdade com os tiranos atenienses, guerreiros e dominadores, – era uma ironia que a própria essência da ditadura ateniense impedia, ou procurava impedir desestimulando-a de várias formas, inclusive submetendo a linchamentos públicos aqueles que o tentassem, como foi a condenação de Sócrates, por exemplo, e mesmo de outros gregos de expressão anos antes, como Protágoras. Ainda que todo cidadão (dêmo) heleno livre pudesse ter acesso ao debate e exprimir suas idéias.
E aqui reside o cerne desta questão: cidadão ateniense era aquele livre, nascido e criado em Atenas, portanto, a política reservava apenas aos atenienses a possibilidade de exercer seus direitos. Ora, haveria cidadão ateniense pobre? Se a resposta é não (a pobreza material é coisa de escravo) então um homem livre não poderia ser simples, e se fosse simples não seria livre. Logo não seria filósofo nem tampouco poderia em pleno Aéropago defender suas idéias a cerca da cidade e seus desígnios.
Se a resposta for sim, então a democracia ateniense era falha em prover aos homens livres pelo menos a possibilidade da riqueza meterial, com o que poderia decidir livremente seu próprio destino e lhe garantiria o respeito dos outros na exposição de suas idéias, dada a sua condição de igualdade – isonomia e isologia – e à liberdade de expressão: eleutherostomos. Pois só o homem livre, nascido e criado em Atenas, poderia trabalhar, estudar e disputar tal espaço. Talvez fosse esta a pretensão de Platão e de Sócrates – criticar a democraia ateniense, bem como atingir a tirania dos Trinta, e mesmo a dos 400, já que os dois acreditavam que a monarquia era o melhor dos regiumes políticos – daí a expressão de reis filósofos.
Platão realizou muitas viagens e conheceu muito da sabedoria egípcia e pitagórica. Numa destas viagens foi capturado por salteadores e vendido como escravo. Algum tempo depois foi resgatado por amigos que pagaram uma pequena fortuna por sua vida. Ao retornar a Atenas, cheio do conhecimento e do modelo pitagórico fundou a Academia, uma comunidade de educação livre cujos princípios estavam baseados na Matemática e na Geometria, ciências que, segundo Platão e seus colaboradores, explicavam o mundo e o universo.
A tradição conservou-nos de Platão uma Apologia de Sócrates, texto que narra a fala de Sócrates perante a côrte e os juízes que o julgaram à morte. A defesa apresentada por Sócrates perante seus acusadores parece ter sido pífia. O mestre não quis se defender, apesar de refutar as duas acusações que pesavam contra si: de subversão e ateísmo com uma eloquência avassaladora, derrubando todos os argumentos contrários à sua pessoa e jogando no ostracismo histórico seus detratores. Sócrates já tinha sido, inclusive, proibido de conversar com a juventude ateniense, pois não considerava nem a democracia nem a monarquia, do jeito que estava, como regimes políticos ideais que garantissem a verdadeira liberdade do homem – ambas já vigoravam na Grécia àquela época – e para Sócrates deveria governar quem soubesse governar, considerando a comunidade humana não como um corpo de cidadãos dotados de direitos iguais, mas como um rebanho que precisava de um pastor que soubesse governar.
Era nesse saber governar que residia a questão socrática tão complexa. Ao se declarar o único homem que conhecia capaz de pensar como estadista o que teria pretendido insinuar àquela assembléia? Não que Sócrates fosse um santo, embora justo ele incomodava muito o governo ateniense com seus métodos de ensino, tendo sido por isso proibido de conversar com os jovens da cidade menores de trinta anos. Mas, Sócrates era um homem simples, filho de cidadãos atenienses simples, e isto em si contrariava a questão do filosofar.
Os estudiosos dizem que para ficar liver bastava a Sócrates formular um pedido de perdão ao tribunal – cerca de 500 homens escolhidos pelos tiranos -, pagaria uma multa qualquer e estaria livre mas, atido à lei como era, Sócrates preferiu não se dobrar, argumentando que pedir perdão implicaria em aceitar alguma culpa, e isso ele não tinha, o quê irritou o tribunal, que, mesmo sem ter nada contra ele, deixou a sentença ser lavada à têrmo e pediu, como era de costume, para que ele declarasse a pena a ser cumprida. Ironicamente, Sòcrates admitiu, contudo, que deveria ser adotado pelo estado como uma espécie de benfeitor. Aceitaria de bom grado receber alimentação especial e gratuita todos os dias até a sua morte natural no ginásio de atletismo da cidade – Pritaneu – como o eram os atletas e os corredores de bigas, heróis da cidade. “Eis o que mereço pelo que fiz.” Muito parecido com o julgamento do Cristo.
Além desta defesa Platão escreveu 34 diálogos e 13 cartas, mas há grandes problemas na autenticidade e na cronologia destes textos. Um dos textos a ele atribuído, Fedro, relata em uma passagem como o deus egípcio Theut abordou o problema da escrita, texto em que Platão nos diz que o ensinamento escrito comunica, não a sabedoria, mas a presunção desta. Tal como as pinturas, os escritos têm a aparência de seres vivos, mas não respondem quando são questionados. Portanto, a escrita afasta o leitor da verdade, ou ao menos, permite uma interpretação diferente da verdade proposta pelo primeiro que a escreveu. Daí muitos críticos verem ambiguidade nos escritos de Platão, e em suas posturas democratas sendo um aristocrata.
Discípulo de Sócrates – uma vida sem investigação não é digna de ser vivida pelo homem.” – Platão acreditava na maiêutica como técnica saudável e verdadeira de questionar-se a si mesmo e aos outros, levando-os a um incessante diálogo interior que, por sua vez, os levaria à verdade – conhece-te a ti mesmo. Estavam embasados e convencidos, mestre e discípulo, de que a filosofia não é um sistema de doutrinas, mas uma investigação que propõe incessantemente os problemas, para deles extrair o significado e a realidade da vida humana. Filosofia seria assim a ciência da vida humana desde que se distanciasse das aparências, tanto quanto a monarquia seria, para ambos, o regime político perfeito, desde que o rei fosse um filósofo.
Busto de Sócrates
Platão conviveu com Sócrates, participou com ele de vários encontros onde discutiam e filosofavam sobre vários temas – política, ética, amor, surgimento da humanidade, os animais, a alma, a constituição do ser humano, o mundo das idéias etc., e destes encontros, reaizados nas ruas, nas casas, nas praças da cidade, retirou o conhecimento que traduziu em livros donde se podem apreender de forma literária os ensinamentos filosóficos de Sócrates, seu mestre, que acompanhou até antes do dia de seu julgamento. Quando Sócrates foi condenado à morte pelo Conselho dos Trinta, Platão refugiou-se em uma cidade vizinha, por medo ou qualquer outro motivo.
Sócrates nada escreveu e só se conhece Sócrates pelos Diálogos platônicos, escritos geniais, fato que leva os estudiosos a localizarem muito de Platão em Sócrates e muito deste naquele. Os escritos platônicos acabaram criando um Sócrates meio fantasioso apesar de impressionantemente humano. De qualquer forma há uma grande dificuldade em se reconhecer o verdadeiro Sócrates histórico e o Sócrates platônico. O comediógrafo Aristófanes (As Nuvens, e outros textos) e Xenofonte (As Memoráveis) que foi discípulo de Sócrates por algum tempo, são as duas outras únicas referências que existem para se estudar o Sócrates histórico, que viveu no século V a.C., embora, segundo estudiosos, ambos de pouca importância. Depois pode-se ler em Aristóteles alguma coisa, mas, dizem os estudiosos que Aristóteles aristotelizava seus textos o que pode significar alguma distorção na descrição de Sócrates.
A visão aristocrática da realidade fez de Platão um propagandista de qualidades superiores, elevando Sócrates a um modelo ideal de ser humano. No seu texto República, Platão seleciona e elege à posições hierárquicas alguns homens em relação aos outros, simplificando: homens de ouro seriam os verdadeiros governantes, filósofos por excelência; homens de prata seriam administradores, generais e soldados especiais, e homens de bronze os comerciantes, que fariam a economia girar com seus negócios, e homens de ferro o resto da população de onde sairiam os soldados e militares afeitos à guerra e a defesa da cidade. Uma aberração para a democracia ateniense, já que o pressuposto na democracia ateniense era a da igualdade, ou que todos tenham direitos iguais no que se refere a aplicação e à submissão às leis e à justiça, ou que possam ser livres de qualquer forma de escravidão, ou que dela possa se libertar pelo trabalho, ou que possa defender-se, pela palavra e inclusive pelas armas, da opressão que intenta tirar-lhe a liberdade…
Esta camisa de força ideal, descrita por Platão, parece limitar a liberdade que se valoriza tanto na democracia, mas qualquer análise um pouco mais cuidadosa nos deixa ver, atualmente, que o quadro tem mesmo estas feições.
Cada época enfatiza um sentido mais marcante da democracia. O certo é que a palavra dêmos quer dizer – povo que governa a si mesmo. Hoje, com um corpo de leis e uma pretenciosa aplicação de justiça pode-se pensar em praticar democracia, desde que o poder da riqueza e a tirania dos que a detêm não a superem.