O poeta narra seu encontro com três animais que impediam-lhe a saída (sua morte e sua ascensão ao Paraíso?) – pantera, leão e loba – alegorias que significam, seguindo alguns estudiosos simbolistas – nesta ordem: pantera: a luxúria – Dante exalta a beleza de sua pele e faz uma analogia com Florença e sua pompa (cidade rica e culta) onde nasceu e estudou inicialmente, mas pode-se estender a alegoria também a Roma, pelos mesmos motivos, sua riqueza e poder; o leão que significa a Casa de França (a coroa), sua soberba e força violenta que cercava as principais cidades italianas; e a loba magricela significa a cúria romana, aliada à casa de França, sedenta por tornar-se rica e independente dos franceses, dos alemães e do próprios italianos.
Ora, diz a lenda que Roma nasceu pelas mãos de Rômulo e Remo, dois meninos amamentados por uma loba. Uma leitura provável é que a loba que os amamentou seria, de fato, uma prostituta, pois às prostitutas eram dados os epítetos de lobas (daí o termo lupanares para designar prostíbulos – casas dirigidas e frequentadas por lobas).
Assustado Dante, que estava na metade de sua vida – (teria uns 35 anos?) – percebe que um vulto se esgueira por dentre as sombras das árvores e pede-lhe que este o ajude. Descobre maravilhado que o vulto é, na verdade, a alma de Virgílio, poeta primeiro de Roma. “…Então, és tu Virgílio, aquela fonte que expande de eloquência um largo rio?” – perguntei-lhe baixando humilde a fronte…” A alma de Virgílio chama-o, então, para empreenderem uma viagem afiançando-lhe que estará seguro, pois uma outra alma, a de Beatriz Portinari, amada de Dante, habitante do Paraíso e, portanto, melhor do que a dele, Virgílio, os guiará pelo Inferno.
CANTO II
Lo giorno se n’ andava, e l’ aere bruno
toglieva li animai che sono in terra
de la fatiche loro; e io, sol uno
O poeta, temeroso, ainda hesita em aceitar o convite feito por Virgílio, a quem chama de mestre, para percorrem os círculos do Inferno. Mas, depois que entende as razões do convite decide-se a empreender a jornada.
Findava o dia, e a sombra, mansamente,
os seres aliviava cá na terra
das fadigas comuns; e era eu somente
a preparar-me para dulpa guerra
da proposta jornada e da consciência,
como dirá meu estro, se não erra.
Ó musas, estendei-me a vossa influência!
Ó mente, em que o que vi se refletia,
possas ora mostrá-lo em sua essência!
E comecei: “Poeta meu, e guia,
olha se tenho o espírito potente
para a empresa que aqui se prenuncia…”
“Ai de vós, almas danadas!”
Inferno – Canto III – (vs. 84)
CANTO III
per me si va nela città dolente,
per me si va ne l’ eterno dolore,
per me si va tra la perdura gente.
“*Deixai toda esperança, oh! vós que entrais!”
No plano real de sua existência terrena Dante parece perceber que se inicia na missão de sua vida – tornar-se o maior poeta latino do mundo, imortal e merecedor dos louros que cingiam as frontes dos imperadores. Escolhe o tema mais espinhoso que existe, pois falará do poder dos homens na terra, das forças espirituais que os guiam, ridicularizará reis, imperadores, papas, fortunas e o prórpio conhecimento da época, desafiará o inferno e seus demônios. Sabe o risco que corre e que não há volta, poderá permancer no esquecimento eterno se não lograr os resultados práticos de sua empreitada literária. Ou brilha ou queima.
Ele e Virgílio passam então à porta do Inferno com a inscrição ameaçadora* – “…Por mim se vai à cidadela ardente, por mim se vai a sempiterna dor, por mim se vai à condenada gente. Só justiça moveu o meu autor: sou obra dos poderes celestiais, da suma sapiência e primo amor. Antes de mim não foi coisa jamais criada senão eterna, e eterna, duro…”E ambos encontram, no vestíbulo, uma multidão em gritos e correria – eram os tíbios e os covardes, eternamente picados por moscas e vespas. Ali, segundo estudiosos, Dante focaliza a alma do Papa Celestino V que abdicou cinco meses depois de ser escolhido (a grã-renúncia) fato inédito nos anais da Igreja, porque não teve a hombridade e a coragem de opor-se às forças que o empurravam.
Os dois chegam depois às margens do Rio Aqueronte, onde um barqueiro, Caronte, apresentado como um demônio, transportará as almas para o Inferno através do rio.
Este interpela a Dante, quer saber o que faz ali, pois percebe tratar-se de um vivo, mas Virgílio o adverte – “…Basta, Caronte”, respondeu-lhe o guia, “que assim foi posto lá onde tudo o que se quer se pode, e tem valia…” Ou seja, Deus quis assim e assim será, e um demónio não pode se opor a tais poderes, sequer questioná-lo.
No Canto terceiro, Dante narra a dor dos covardes e indecisos ali conservados não por crimes ou faltas graves específicas cometidas, mas em razão de seu caráter. Como grandes lagartos indolentes estavam nus e sendo eternamente picados por insetos, tendo seus rostos e corpos salpicados de sangue que lhes escorria até os pés, caindo no chão em que vermes se alimentavam (…)Ali, suspiros, queixas e lamentos cruzavam-se pelo ar, na escuridão, fazendo-me tremer por uns momentos. Línguas estranhas, gírias em profusão, exclamações de dor, acentos de ira, gritos, rangidos e bater de mão, produziam rumor que eu nunca ouvira, no nevoeiro sem fim se propagando, como a areia que um turbilhão expira…”Mestre”, indaguei,”os ais que ouço o que são? Que gente é esta em dor deblaterando-se?” “As almas”, respondeu-me(…)