Comentários

à guisa de COMENTÁRIOS, apenas.

Há, pelo menos, três formas de ler/entender a Comédia de Dante: poeticamente, politicamente, filosoficamente. O que não significa que as três sejam estanques, divididas entre si. Pelo contrário, são complementares e serão melhor compreendidas se vistas como um todo.

Digo poeticamente, por razões óbvias, é, indiscutivelmente, o maior poema latino já escrito em todos os tempos, um épico, porque ainda não surgiu no hemisfério ocidental escrito de maior envergadura e alcance – social, antropológico, filosófico e moral, e que trate de um homem e suas aventuras morais, movidas por amor e ao mesmo tempo consiga retratar tão bem toda a humanidade; escrito com tamanho rigor métrico, versos e rima, com conteúdo ético e crítico – é uma obra completa que abarca forma e substância, erigida dentro dos padrões rígidos da arquitetura moral que conformava um homem, no sentido mais amplo do termo, à época, como as catedrais góticas e seu impressionante formalismo.

Politicamente porque expõe a condição do poder local, temporal, dá-lhe continuidade histórica posto que venha do passado, paulatinamente, a antecipar algumas formas futuras e estruturas inalteradas de poder, revelando o jogo interessante das disputas pelo mesmo, exercidas pela igreja e pelo império – duas formas políticas de poder – que na visão de Dante deveriam se unir – e que ainda hoje se faz notar em muitos países do hemisfério Sul.

E filosoficamente não só pelo alicerce embasado sobre as colunas do saber aristotélico, platônico e de outros “santos” mestres do conhecimento humano, escolásticos que direcionavam o pensamento da época, mas, principalmente, por colocar o homem, enfaticamente – outra função poética? – como o centro de questões terríveis que acalentam as discussões de todas as academias, em todos os tempos, aparentemente sem solução, revelando por trás de uma densa atmosfera antropocêntrica – a medida de todas as coisas, diriam os sofistas- o modo medieval do homem ser/pensar/agir e antecipando ou perpetuando o limite do ser e do vir a ser dentro daqueles estruturas propostas no poema.

Com tal amplidão conceitual Dante demonstra ser assim um habitante contumaz das fronteiras do pensamento humano, vivenciando “in loco” as peripécias e a dinâmica caótica que antecede todas as épocas de transição, em que homens e instituições agem atabalhoadamente uns, para manter em pé o que à duras penas se ergueu, e atonitamente outros agitam-se preconizando as mudanças do porvir, propondo as alterações necessárias para sobre um fim reerguer um novo começo. Dante pode transitar com elegância, sabedoria, fluidez e equilíbrio pelos dois extremos, antecipando o antropocentrismo renascentista numa época em que o teocentrismo e a rigidez emanados pela presença imponente da Igreja medieval interferia ordinária e diretamente nas questões da vida, firmemente enraizada por força da tradição e do poder eclesiástico nas instâncias cotidianas do homem comum, ditando-lhe cem por cento no mais das suas atitudes.

Seus conhecimentos da poética grega, os estudos de franciscano, sua aptidão política, sua ação poética laguedociana e linguísitica, sua visão de futuro esquadrinharam as rotas singulares e tortuosas de sua existência. Foi soldado, boêmio, enamorou-se perdidamente por uma mulher mais rica, casou-se de arranjo, teve quatro filhos, deve ter aprontado mil e umas, o que não cabe à historiografia oficial registrar, mas, um homem como ele, numa cidade como Florença, numa Itália como aquela não poderia ser diferente. Seu tempo era pura efervecência. E não o são todos os tempos humanos, se é que há outros senão um só?

A questão fundamental a que se propôs Dante foi – frente à possibilidade de exercer o poder, de fato, e dele usufruir, não há para o homem comum e normal, pobre ou rico, como resisitir a força avassaladora que o domina e que o faz perder as rédeas da razão, não importando qual o estofo moral que a conduza, levando-o por fim a perder-se e a se deixar conduzir por paixões além de seus limites próprios. É preciso ser um deus, grego, hebraico, cristão para tal, ou seja, apenas aqueles que estabeleceram os princípios basilares de uma religação efetiva com o grande arquiteto, o Deus, o criador, ou os deuses, puderam agir com tal isenção. Todos os outros homens que tentaram falharam. Mesmo porque se o fizeram só o conseguiram pela metade, dado que as divisões do poder – temporal e espiritual – não se coadunam. O período final do medievo cindiu o homem e fê-lo travar uma luta impressionante em que se via constantemente perdido entre a carne e o espírito, e ainda que sua razão fosse totalmente apoiada em princípios religiosos, onde se refugiava sempre que os ardis do “demo” lhes viessem espicaçar, foram poucos a seguir tais princípios e, ainda assim, foram errando pelo caminho, e muitos, pelo menos, serviram de exemplo, o que chega a comover, ou a provocar risos, se levarmos em conta que nenhum foi, verdadeiramente, inútil. Aos pensadores, pelo menos, foi-se-lhes reservado um giro celeste.

Dante nos apresenta um novo tipo de herói cujos atributos e virtudes são baseados na conduta moral e na retidão de cada um, não em feitos físicos, amorosos – a exceção do tipo platônico de amor, como o sentido por Beatriz – e demonstrações de coragem, como os gregos. O herói dantesco, latino, é enfermo, febril, assustado, precisa do outro, curiosamente de um fantasma, um tutor histórico – e também poeta – para percorrer seus labirintos num mundo irreal, de delírios e imagens aterrorizantes. É o reflexo de um mundo decadente, de um império que não crescia mais em dominação, como foram os gregos e os romanos anteriores, pelo contrário, encolhia e sofria internamente com questões éticas e morais, intrinsecamente relacionadas à política da época, à corrupção, à divisão dos poderes, como um resto de carne putrefata furiosamente disputada por hienas.

Uma análise mais fria do poema nos deixa entrever, ou inferir, contudo, que quanto maior a descida, a queda, maior a capacidade de ascensão do homem – parece nos dizer veladamente: ninguém vem ao pai senão por mim, mas essa já não é mais a voz do Cristo, e sim do próprio Lúcifer. Jogo de tentações, essa propositura, longe de atestar a qualidade e o suposto valor deste, clama para uma melhor compreensão do que disse Aquele, o filho do Homem. Leia-se, para tanto, o próprio Santo Agostinho, anterior a Dante muitos séculos.

Além das quatro maneiras, quatro sentidos propostos pelos exegetas de Dante e destas outras três formas de leitura por mim acrescentadas há, por baixo, mais uma infinidade de modos de interpretação do texto secular. Isso se dá pela própria proposta/apresentação intrínseca do texto e seu modo de ser polissêmico. Equivale dizer, cada leitor fará a sua leitura e consequentemente a sua interpretação, o que de per si, atesta a qualidade e o caráter imortal do poema.

Aliás, quem sabe se do poeta também, posto que lá pelas tantas, logo na chegada de Dante ao Paraíso em um diálogo com o deus da mitologia grega Apolo, Dante diz pretender o laurel, a coroa de louros que ostentam à cabeça Virgílio, Homero e outros imortais da poesia clássica.

Este trabalho que agora apresento, aproveitando-me de resumos e leituras de outros estudiosos do tema (desculpem-me os não citados na bibliografia), não pretende ser crítico sob nenhum ponto de vista, mesmo porque falta-me talento excelente para tal e não o apresento com a profundidade que merece. Pelo contrário, é só um registro da qualidade literária e do engenho deste poeta magnífico que foi Dante; eis porque abstenho-me de tecer comentários críticos e atenho-me a apresentar a Comédia resumidamente, embora pontue por todos os seus cantos, sem maiores propósitos senão o de a visitar e a expor como uma obra de arte que deve ser lida, estudada e compreendida por todos em todos os tempos, ela que seguramente atravessará incólume muitos mais séculos adiante. E que cada qual faça as suas considerações críticas baseadas em seus próprios conhecimentos e que saiba separar, ainda em vida, joio de trigo, enquanto houver política como resultado das relações e interações humanas. Aristóteles já dizia que o ser humano é um animal político – zoon politikon.

Sempre imaginei uma combinação entre as palavras ética, política e poesia. Um conceito abrangente que se resumiria numa crítica da apresentação, da forma, com ênfase da Estética, de conteúdo puramente ético, político e poético. Em Poética a estética tem de ser crítica, o que não significa um abrandamento da qualidade nem o abandonar da criatividade. Daí que não importa o que seja a obra, pouco interessa se o resultado seja absolutamente feio ou excelentemente lindo, do ponto de vista dos cinco sentidos, conquanto que se atinja o desejado, a crítica substancial do objeto considerado, compreendido apenas pelo sentido extra de cada um.

Mais do que afeiçoar-se à obra, apreender dela o traço marcante e impessoal que a todos atinge, indistintamente. A Comédia, à despeito do que este termo venha a significar, hoje ou naquela época em que foi escrita, não foi feita para atingir esta ou aquela pessoa, mas a toda a humanidade que se colocasse ao sabor do pensamento e que procurasse compreender melhor o mundo e os rumos que o orientavam.

Talvez seja esta a perfeição, o que seguramente Dante Alighieri logrou obter com seu poema épico, crítico, completo, arte no mais elevado grau de refinamento, como as catedrais góticas que ele deve ter visitado. Talvez a saibamos comparativamente apenas na pretensão artística de Richard Wagner, no último período do romantismo, em que procurava-se apresentar o espetáculo completo, com seu teatro-ópera-música na Alemanha do século XIX.

Entretanto, aos quatro sentidos (quattro sensi) propostos para seu entendimento, o mundo me chega pela razão e pelo apelo ao senso, e tomado de um laivo de liberdade poética incompreensível, eis os dedos da musa a tocar-me, acrescento mais dois – o de comédia propriamente dito, ou seja, é sim possível rir e muito com todo o texto, desde que estejamos devidamente equipados para abandonar a questão religiosa que o permeia (e para tal é preciso considerar apenas e tão somente o que é a religião atual sem religiosidade – hoje uma pantomima, uma grande forma de comércio que lançou no descrédito das pessoas inteligentes as suas manifestações, e responder a uma questão – estaria Cristo certo e o cristianismo errado?), ou, desde que saibamos rever as cenas histórico-políticas da humanidade como as farsas pós-trágicas que K.Marx prenunciou, para muito além do abandono filoético ou de qualquer abordagem – o homem faz o que faz pois não pode fugir de sua condição essencial, por mais que as sociedades imprimam uma busca pela qualidade na educação e no desenvolvimento da vida. Aliás, educar resolve?

Por fim o segundo sentido por mim acrescentado, à revelia de outros críticos – o da crítica jornalística, despojada e calcada no estilo da época – anterior, inclusive, à técnica de impressão desenvolvida por Johannes Gutemberg em 1450 (utilização de placas matálicas moldáveis), o que seguramente não impedia os textos impressos a partir de técnicas que a própria Igreja dominava – os padres copistas -, mas limitava o uso e impedia a disseminação do conheciento para além dos muros do templo. Não se pode dizer que Dante não sabia das coisas de seu tempo ou que não tivesse tido acesso às tais informações. Ele não só as tinha em conta como também participava diretamente das mudanças e das alterações dos rumos de sua cidade, de seu país, enfim, dava pontos importantes na costura da colcha de retalhos que era sua cidade.

O Dante escolástico, filósofo, religioso e poeta apaixonado apresentado na Comédia, foi definitivamente um homem político refinado de seu tempo (porque nesse tempo atual em que, eu leitor, vivo, só o posso qualificar pela minha própria ótica) e não poupou críticas à igreja reformada nem às estruturas de poder que se mantinham firmemente arraigadas no espírito feudal de sua cidade. Lá como agora, o Poder e seu sabor exercem fascínio e atormentam o homem. Assim, Inferno e Paraíso ainda se parecem com os efeitos de uma conquista merecida – mais do que tudo, pela força que a igreja tem sobre seus súditos, esses dois extremos exercerão ad eternum fascínio e medo nos homens. Purgatório deve ser o estado febril em que os espíritos se encontram nos momentos de refelxão, na solidão do pensamento e da autocensura. Afinal, quem nunca pecou, seja lá o que venha a ser isso, pecar!?