“A singrar melhor água, eis que o batel
de meu engenho segue,
a vela inflada, deixando atrás o pélago cruel.
E, pois direi da parte separada
na qual a essência humana se depura,
por merecer o céu, diginificada.
Musas! Fazei volver a extinta e pura veia
de meu cantar, com vosso alento!
Nem me falta Calíope segura,
Que à minha voz infunda aquele acento
que foi às Pêgas míseras fatal,
do perdão lhe tirando o pensamento!”
Lugar curioso, uma ilha em meio a um oceano, invenção pura do poeta e de sua licensa para sonhar e criar, o Purgatório é a ante-câmara do Paraíso terreal, para onde são enviadas as almas dos que cometeram crimes menores (de amor) do que aquelas almas que já estão no Inferno. Não há citação na Bíblia da existência de tal lugar, mas se lá, no Inferno, não há salvação em hipótese alguma, aqui, no Purgatório, pelo menos aguarda-se e expia-se a pena imputada ao pecado cometido, na expectativa de ascender ao Paraíso, sem padecer as agruras infernais, e após findo um período em que a alma expiou seus erros, cometidos em vida, logra-se receber um lugarzinho no céu.
Embora as situações descritas dos encontros com as almas do Purgatório não sejam agradáveis, ainda há dor, e a descrição do sofrimento e do terror ali sofridos sejam bem mais amenos, não há a crueza como a encontrada no Inferno, e, curiosamente, há até quem não se incomode em estar ali, posto que dali se sai ao fim de um período, e qualquer lugar é, sem dúvidas, melhor do que as caldas quentes de Lúcifer e do Inferno dantesco, lugar de dores e sofrimentos eternos, o purgatório, é, como diz o próprio nome, um lugar de purgação, de curar feridas, de limpeza. Limpeza pesada e que cansa, quase um castigo. No Purgatório Dante encontra, inclusive, outros poetas, mestrese amigos com os quais estudara e travara inúmeros debates poéticos. Estudiosos consideram o Purgatório o livro mais criativo da Comédia, e o simples fato de ser uma invenção do poeta já o comprova, mesmo porque a igreja gostou da idéia e a aceitou formalmente.
São sete os terraços do Purgatório, e para a primeira parte da escalada vão as almas dos pecadores que se arrependeram na última hora antes da morte. Deverão ali, aguardar a sua admissão, pela porta de São Pedro, aos círculos superiores, locais em que cumprirão as diversas penas correspondentes aos pecados praticados em vida e onde os purgarão para depois serem admitidos no Paraíso. Na ordem estes terraços, círculos sobrepostos abrigarão os: – 1)Orgulhosos; 2) Invejosos; 3)Iracundos; 4)Preguiçosos; 5)Avaros e Pródigos; 6)Gulosos; 7)Luxuriosos.
A leitura dos versos iniciais indica que Dante sente, na segunda parte da Divina Comédia, uma crescente satisfação por ter saído do Inferno.
Purgatório – Canto I – suplicando a Calíope, a musa grega da poesia épica, a lhe conceder alento e inspiração para continuar seu longo poema. A citação dos pássaros Pêgas se dá porque, diz a lenda, as filhas do rei Piério lançaram um desafio – vencer as musas num canto. As ambiciosas meninas, porém, desistiram do intento e perceberam o ridículo de sua intenção tão logo as musas cantaram as primeiras notas, mas foram assim mesmo castigadas e transformadas em Pêgas, pássaros que não têm canto próprio, e se dedicam a imitar os demais.
O poeta, ainda acompanhado de Virgílio, canta as belezas e as cores do Céu e das estrelas, o planeta Vênus e as constelações de Peixes e do Cruzeiro do Sul, ou seja, indica que estava a observar o hemisfério Sul (austral) do planeta, pois tais estrelas só são visíveis ali, e na Antiguidade prevalecia a crença de que tal hemisfério era totalmente despovoado (o continente Atlântico, descrito por Platão fala exatamente de um mundo desconhecido, mas fantástico, para além das colunas de Hércules – em Gibraltar, na saíuda do Meditrrâneo para o Atlântico insondável) o que comprovou-se, depois das navegações empreendidas por italianos, portugueses e espanhóis, ser uma grande bobagem. Em todo o poema Dante lança mão de seus conhecimentos de Astrologia e dá mostras de dominar tais conhecimentos. Descreve as horas em que os fatos poéticos narrados ocorreram a partir da análise da situação e da posição dos astros celestes.
Observando as estrelas, a posição do Sol, da Lua e identificando vários corpos celestes Dante embeleza seu grande poema com conhecimentos que hoje pertencem a uma categoria restrita de pessoas e técnicos, mas que antes faziam parte da educação seriada de um jovem da baixa nobreza (atual classe média).