Dante e Virgílio caminham e se aprofundam pelo inferno
São vários giros pelos Círculos do Inferno – nove Círculos concêntricos ao todo – e do sétimo em diante há círculos menores, ou valas, dentro de círculos – e em cada qual os dois poetas travam encontros e diálogos com as almas das pessoas que cometeram determinados pecados em vida, e também com alguns demônios que se sentem ameaçados e insatisfeitos por tê-los ali, dentre os habitantes infernais – lugar de almas pecadoras, dor e privações. Um ser ainda vivo e protegido por uma alma habitante do limbo, ela mesma, por sua vez, lá colocada por não ser cristã (o poeta Virgílio vivera cerca de mil e trezentos anos antes da era Cristã) deixa os demônios irritados e causa-lhes estranheza.
Mesmo no inferno há uma ordem e deve-se obediência a ela. Embora irritados os demônios nada, porém, podem lhes fazer, pois o próprio espírito de luz irradiado de Beatriz, sua musa eterna, fez a solicitação diretamente aos céus e conseguiu a autorização para aquela aventura. Os demonetos devem, portanto, aceitar-lhes as presenças.
Cada Círculo do Inferno corresponde a uma volta da cauda de Minós (ser mitológico horrendo, diabólico e julgador dos pecados, habitante das profundezas sulfurosas), por onde os poetas vão descendo, e o número de voltas de sua cauda indicava o Círculo ao qual deveria descer também a alma condenada. Todos que para lá eram enviados padecem da mais horrenda dor e sofrimento e pagam seus pecados em lugares lúgubres, sombrios e imundos. Lá, dentre os muitos, Dante encontra gente de sua época, políticos e religiosos, artistas, homens letrados e comuns, ricos e pobres, contemporâneos a ele, mulheres, velhos e jovens, enumerados numa troça literária, cujo propósito parece estar além de sua vingança pessoal e poética, posto que levará, ironicamente, pela eternidade em inominável martírio, todos aqueles que o traíram, perseguiram e detrataram, ou foram contra suas idéias e seu modo de ser.
No poema Dante aponta nominalmente todos os seus perseguidores, além de citar outras pessoas famosas desde a antiguidade, acusando-os dos mais variados crimes e delitos, da simples ignorância e insolência à corrupção e ao assassinato em massa.
No Inferno dantesco há lugar para todos os pecados. Àqueles, entretanto, que os cometeram sem o saber, por deslize, fraqueza de espírito, ou simplesmente por ignorarem o Cristianismo e venerarem outros deuses (o caso de Virgílio, guia e mestre na jornada e vários filósofos e pensadores da antiguidade clássica grega e romana anteriores ao cristianismo), reservou-se-lhes, em locais menos grotescos e abjetos do Inferno – no Limbo, a ante-câmara -, penas e castigos menos severos e degradantes. Mas, para os que sabiam o que estavam fazendo, aos conscientes de seus erros, cristãos ou não, os castigos são inomináveis e as agruras eternas.
Assim, vemos desfilando em versos rimados (poesis – significatio – significante – jornalismo da época? Eis a função da literatura comparada, uma análise relacional), em dores e sofrimento atroz, por todos os nove círculos do Inferno, desde políticos, embusteiros, ladrões, os de vida fácil, criminosos, homosexuais, falsários, religiosos, enfim, toda a sorte de malfeitores e intrujões que de alguma forma prejudicaram as pessoas e si mesmos durante suas vidas. Quanto mais fundo é o círculo, pior é o castigo, pois pior foi o crime/pecado cometido, numa relação bilateral inexorável. E no mais profundo daqueles buracos, curiosamente o mais gelado, encontra-se o próprio Lúcifer que assiste ao pecador em pessoa e parece se divertir em provocar-lhe dores impensáveis.
Àqueles que cometeram em vida pecados e crimes contra a humanidade, contra as pessoas, contra si mesmos, contra a natureza, enfim, intentaram contra a própria vida em todos os sentidos e no sentido mais amplo desta, resta-lhes apenas o castigo eterno do Inferno que Dante descreve neste primeiro livro da trilogia. Para cada pecado um tipo especial de castigo, alegoria fantástica surgida na mente do poeta, influenciado por seus estudos feitos nas escolas da Igreja, detentora do conhecimento da época e de todas as filosofias orientais e ocidentais, de onde seguramente provém toda a sua ilustração.
Para pecados menos agressivos à conduta ordinária dos homens, e que portanto, prescreve-se-lhes, ainda, uma salvação, Dante reserva alguns giros do Purgatório (sete ao todo). Ali, as almas expiam seus pecados e estão ainda em posição de galgarem o caminho do Paraíso Terreal. Estar no Purgatório é estar a meio caminho do Paraíso, portanto, ainda que se sofra lá de alguma forma, é bem melhor do que estar no Inferno dantesco.
A obra assume também caráter místico e mítico e já rendeu inúmeros estudos aprofundados de literários, religiosos, exegetas e filósofos, que viram nela vários ângulos de uma abordagem carregada de simbolismos, inclusive alguns contrários à própria Roma, à Cúria e ao papado de forma geral, revelando suas fragilidades, sua queda e decadência, o quê, sabe-se, o próprio Dante também viu e experimentou em vida.