Um modo ímpar de usar palavras – a magia do texto medieval.
Entre os séculos XII e XIII, no sul da França, floresceu a grande poesia trovadoresca que é a ponta da meada das poéticas européias – a de Dante e a de Petrarca, a de Villon e a de Chaucer, e a dos primeiros poetas portugueses. Apesar desta importância toda, os textos dos trovadores provençais só passaram a entrar na circulação sanguínea da poesia moderna após os estudos críticos e traduções de Ezra Pound – trata-se, portanto, de uma redescoberta.
E de uma redescoberta importante e definitiva, só devida ao faro seletivo de um dos maiores e mais exigentes poetas críticos de nosso tempo.
Em conjunto, os trovadores estabelecem um sofisticado repertório de formas e estilos, que vão do trobar leu (poesia leve) ao trobar clus (a poesia hermética) e ao trobar ric (a poesia rica ou rara), da sátira à lírica amorosa, em todas as suas nuances, chegando ao “nonsense” e à metapoesia.
Mas, acima de tudo, conseguem um equilíbrio entre poesia e melodia (motz e’l son) até hoje não superado. Por isso mesmo, Pound colocou a arte poética provençal ao lado da grega, clássica, como modelo e melopéia (a música das palavras), um dos três modos de fazer poesia (os outros seriam a fanopéia, poesia de imagens, e a logopéia, poesia de idéias).
Dentre os maiores trovadores do período sobressaem-se dois – Raimbaut d’Aurenga e Arnaut Daniel – cultores do trobar clus e do trobar ric – pela originalidade e perícia técnica de seus versos, distinguindo-se Arnaut como o mais ousado e radical, o protótipo de poeta-inventor, como o seriam em tempos modernos Mallarmé e o próprio Pound.
Arnaut teve no Conde Raimbaut de Orange, o poeta da “flor inversa”, um notável predecessor. Ambos constituem casos exemplares de um dos mais altos momentos da poesia de todas as épocas supreendendo pela concisão e precisão da linguagem, pelo “ostinato rigore” das construções, pela inventividade das imagens e pelas maravilhosas sonoridades vocabulares – um dizer estranho e belo, que os projeta em cheio na modernidade.
Augusto de Campos
Trovador – Provençal: Nome dado ao poeta lírico medieval que compunha em música suas cantigas românticas e também as recitava, em geral acompanhado de um instrumento musical, geralmente alaúde, e pandeirolas percussivas.
A poesia trovadoresca foi um gênero singular que floresceu entre os séculos XI e XIII no sul da França, especialmente na Provença, e no norte da Itália e da Espanha. Uma das mais brilhantes formas poéticas já criadas, a arte dos trovadores influenciou toda a poesia lírica posterior na Europa.
Trovador é a denominação dada ao poeta lírico medieval que, em geral, não só compunha música para suas poesias românticas como também as recitava, quase sempre se fazendo acompanhar de um instrumento musical. A palavra trovador origina-se do verbo provençal trobar, que também significa “encontrar”, “inventar”.
Assim, o trovador era alguém que inventava novos poemas, descobrindo versos novos para sua elaborada lírica de amor. Os trovadores escreviam na língua da Provença (langue d’oc ou occitana), ao contrário dos poetas mais cultos, que compunham em latim. Muitos poemas dos trovadores foram preservados em manuscritos conhecidos como “cancioneiros” e as regras que governavam sua arte foram estabelecidas num trabalho chamado Leys d’amors, de 1340.
O trovador ganhava a vida apresentando-se nos palácios dos nobres e nas cortes reais e sua influência foi sem precedentes na história da poesia medieval. Favoritos nas cortes tinham grande liberdade de expressão e ocasionalmente até mesmo interferiam na arena política, mas sua grande contribuição foi criar uma aura até então inédita de cortesia e amenidade em torno das damas da nobreza.
Os poemas líricos cantados exigiam técnica própria para serem entendidos pelo auditório. Mais que a originalidade, o poeta escolhia temas conhecidos, como o amor cortesão e a narração pastoral, e um tratamento que fosse familiar aos ouvintes. O gênero específico da poesia amorosa dos trovadores era a canção (cansó) que, segundo as Leys d’amors, devia ter de cinco a sete estrofes e era considerada a suprema forma lírica.
Os trovadores cultivaram também outros estilos e formas poéticas: o planh, elegia; pastorela, diálogo entre o cavalheiro e a pastora; sirventés, sátira política ou religiosa; alba, que cantava a separação dos amantes na madrugada; jeu parti ou debate, um diálogo entre dois poetas; e balada ou dansa, uma canção para dançar com um refrão. O trobar clar (ou plan) é a poesia “clara”, “plana” ou “leve”; o trobar clus, a poesia “fechada”, “rica”, “obscura” ou “hermética”. Mais de duas centenas de melodias que acompanhavam as poesias foram conservadas. Guilherme IX, conde de Poitiers e duque de Aquitânia foi o primeiro trovador conhecido.
Outros trovadores provençais foram Raimbaut de Vaqueyras, Bertran de Born e Peire Vidal. Os trovadores da península ibérica, que compunham em língua galego-portuguesa, são os poetas dos cancioneiros (Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro da Vaticana). ©Encyclopaedia Britannica
TRECHOS DE POESIA TROVADORESCA
ARNAUTZ DANIELS
Canção de Amor Cantar eu Vim
(Chanson do’ill mot son plan e prim)
Canção de amor cantar eu vim
ao ver o verde do capim
e o campo enfim
cheio de cor
de muita flor e verde ver a folha,
para que o ar
no meu cantar
os pássaros recolha.
Chanson do’ ill mot son plan e prim
farai puois que botono ‘ill vim
e l’aussor cim
son de color
de mainta flor
e verdeia la fuoilla,
e’il chan e’il briallson a l’ombraill
dels auzels per la bruoilla.
Arnautz Daniels
Trad. Augusto de Campos (Mais provençais – Cia. das Letras)
Dante cita Arnaut Daniel na Divina Comédia no Canto XXVI do Purgatório, em que as almas caminham entre chamas – as dos luxuriosos segundo a natureza em uma direção, e em sentido contrário as dos lascivos contra a natureza. Ali, no verso 115, o poeta Guido Guinizelli aponta Arnaut: –
“Irmão”, me disse, “quem ali se interna”,
e apontou uma sombra à sua frente,
“foi o artesão maior da voz materna.”
Nos versos 142/148 lemos :
“Eu sou Arnaut, que choro e vou cantando:
choro a fúria de outrora, sem furor
e o prazer do porvir sigo esperando.
E ora vos rogo, por este valor
que o mais alto da escada voz ensina:
relembrai para sempre a minha dor!”
E se apagou no fogo que os refina.
Rouxinol
(Rossignol)
Amigo Rouxinol,
ainda que sofras tanto,
meu amor te console
com a leve canção
que levarás bem cedo
à condessa excelente,
lá em Urgel, de presente.
Amics Rossignol,
sitot as gran dol,
per la mi’amor t’esjau
ab una leu chanzoneta
qe’m portaras a jornau
a la condessa valen,
lai en Urgel per presen.
Roembauz d’Aurenga – Trad. Augusto de Campos (idem – op.cit.)