Para esclarecer o que se dirá, é preciso primeiro dizer que o significado desta obra não é um só. Trata-se de uma polissemia poética. De fato, o primeiro significado do texto é dado por sua letra, o outro é dado por aquilo que se quis significar com a letra do texto. O primeiro é chamado literal, o segundo, ao contrário, alegórico ou moral ou anagógico. Estes diferentes modos de tratar um argumento podem ser exemplificados, para maior clareza, com os versos: “Quando do Egito saiu Israel, e a casa de Jacó (separou-se) de um povo bárbaro; a nação judaica foi consagrada a Deus; e Seu domínio veio a ser Israel.
De fato, se considerarmos só o que é literal no texto o significado é que os filhos de Israel saíram do Egito, no tempo de Moisés; se considerarmos a alegoria, o siginificado é fomos redimidos por Cristo; se considerarmos o significado moral, o sentido é que a alma passa das trevas e da infelicidade do pecado para o estado de graça; se considerarmos o significado anagógico, o sentido é que a alma santificada sai da escravidão da presente corrupção terrena para a liberdade da alegria eterna. E, embora esses significados místicos sejam definidos com nomes diferentes, geralmente todos podem ser definidos como alegóricos, porque se diferenciam do significado literal, ou seja, histórico. De fato, a palavra alegoria deriva do grego alleon, que em latim tornou-se alienum ou seja, “diferente”.
Eis o que Dante, possivelmente (a autoria deste texto é contestada) descreve em sua Epístola XIII quando apresenta a Cangrande Della Scalla (um possível mecenas crítico/editor da época) a chave para a leitura de seu poema. Há, contudo, uma discussão entre seus exegetas sobre a autoria desta Epístola. Para Umberto Eco, contemporâneo e crítico estudioso da Idade Média européia e das suas manifestações artísticas, é irrelevante a controvérsia acerca da teoria das poéticas medievais e da história da obra de Dante – “mesmo porque esta epístola que apresenta a Comédia reflete uma atitude interpretativa muito comum em toda a cultura medieval, e a teoria da interpretação nela exposta explica a maneira como Dante foi lido durante séculos.
A teoria simpeslmente aplica ao poema dantesco outra teoria – a dos quatro sentidos (quattro sensi)-, que circulou por todos os séculos da Idade Média e que pode ser resumida pelo dístico atribuído a Nicholas de Lyra ou a Agostinho de Dácia: “A letra ensina os fatos, a alegoria, no que deves crer, o sentido moral no que deves fazer e o anagógico ao que deves tender.”Umberto Eco instila que Dante era pretencioso o suficiente para acreditar que sua Divina Comédia era uma perfeita continuação da Bíblia. (Arte e Beleza na Estética Medieval – Cap. 11.6 – pg. 159)
A “Comédia” foi a obra máxima de Dante e um marco inquestionável da literatura medieval latina. Permanece misterioso o motivo pelo qual Dante deu à sua grande obra um nome genérico, e não próprio. E esse nome genérico, Comédia, atribuído a uma descrição do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, põe um leve sabor de ironia na mente do leitor atual da obra. Mas, é uma escolha baseada em princípios aristotélicos. O termo Divina só foi cunhado muito mais tarde, provavelmente por outro escritor moralista italiano – Giovanni Benevenuto Bocaccio (autor de Il Decameron). Para Dante, seriam o Inferno, o Purgatório e o Paraíso mera ficção? A pergunta parece ousada demais, mas o nome Comédia, hoje, intriga o público comum.
E parece que intrigou até os leitores medievais, pois que o próprio Dante procurou explicá-lo de dois modos diversos. Inicialmente, ele afirmou que o nome Comédia fora escolhido porque, na obra, ele utilizou não o estilo sublime, próprio das epopéias escritas em latim, mas sim um estilo médio, e, por vezes, mesmo o estilo baixo (a Langue D’Oc). Insatisfeito com sua própria explicação, Dante afirmou, depois, que dera esse nome a seu grande poema, porque era então costume chamar de Comédia as obras que, de porte aristotélico, mesmo tendo se iniciado com dor, findassem com felicidade (Cfr. P. Cataldi e R. Luperini, op. cit. p. XXXVI).
“Conforme ressalta o próprio Dante, a Divina Comédia é uma obra doutrinária. E foi escrita a partir da língua vulgar porque aquela era a mais natural aos homens – como defende em seu texto A Língua Vulgar (De Vulgari Eloquentia). Na Comédia, expôs a sua cosmovisão, realizando uma obra completa – opus consummatum – como preconizara Jean de Salisbury: “transmitir toda a ciência do quadrivium medieval com toda a arte do trivium.” Ou seja, seria um poema para o atual terceiro grau, ao que teriam acesso, a princípio, todos estudantes secundaristas prestes a ingressar em uma universidade e os universitários se tivéssemos uma educação de qualidade.
Na Idade Média, punha-se em relevo o fato de que a Filosofia é exata e cheia de verdade (verum). Entretanto, é seca, e pouco agradável. A Poesia, por seu lado, é toda cheia de beleza (pulchrum), mas tem pouca verdade e pouca objetividade, sendo facilmente deturpável. Entre a Filosofia e a Poesia, o que escolher? Entre o verum e o pulchrum, o que preferir, se for preciso preferir? E por que preferir um ao outro se ambos são transcendentais e, portanto, redutíveis ao ens, têm o mesmo fim? Entre a coruja, símbolo da Filosofia, e o rouxinol, símbolo da Poesia, não se deve escolher com exclusão. Deveríamos criar um terceiro têrmo híbrido, equilibrado, com capacidade de transitar por um lado e pelo outro com a mesma desenvoltura.
Por isso, a Idade Média desejava realizar a obra perfeita que ensinasse a verdade, sem excluir a beleza, e mais, que conduzisse ao bem. Essa obra de arte perfeita, de inspiração francamente aristotélica, e que unia intencionalmente o Verum, o Bonum e o Pulchrum, foi realizada de modo completo nas grandes catedrais góticas.
Verdadeiras bíblias de pedra, nas quais o povo aprendia a História sagrada e profana, onde se ia buscar o bem envolvido na luz da beleza, resplandecendo nos vitrais e na própria arquitetura, que envolvia o ser com jogos de luz e gradientes acústicos de insuperáveis qualidades, na igreja, ao se ouvirem os cânticos, com aquela iluminação e naquela atmosfera cheia de efeitos o espírito deveria se elevar. Era um teatro sagrado, um palco de elevação.