No Canto XXIX Dante e a mulher caminham então para dentro da floresta, avançando pela margem do rio Letes em sentido contra-corrente. Depois de algum tempo um enorme clarão ilumina parte da floresta e Dante percebe que um grupo de vinte e quatro anciãos caminhavam sob a luz de sete candelabros que deixavam rastros luminosos e coloridos no espaço.
Os vinte e quatro varões que caminhavam sob sua luz eram na verdade os autores dos livros do Velho Testamento bíblico andando de par em par, com coroas de lírios na cabeça e cantando Hosana: – “Bendita sejas tu, eternamente, entre as filhas de Adão, e abençoadas as graças de teu reino onipotente.” Nos versos seguintes o poeta descreve uma visão parecida com a do profeta Ezequiel (do livro homônimo da Bíblia) em que quatro “animais” (seriam naves?) surgem do céu,” por entre ventos e nuvens, no ar candente“ . Estudiosos dizem tratar-se dos quatro evengelistas do cristianismo (Novo Testamento) – João, em forma de águia; Marcos de leão; Lucas como um touro, e Mateus como homem.
No poema Dante se exime de descrevê-los amiúde, pois diz que Ezequiel já o fizera na Bíblia, mas difere daquela descrição primeira ao atribuir-lhes seis asas apocalípticas em vez de quatro, como o profeta visionário. E no centro deste cortejo um carro de duas rodas movia-se atrelado a um Grifo. A simbólica toda representa, segundo os estudiosos, a Igreja – o carro – sendo puxado pelo seu fundador – o grifo (Jesus Cristo). O Grifo é um animal fabuloso metade águia e metade leão, ou seja, de natureza divina e ao mesmo tempo humana, cuja metade águia, divina, era dourada e a parte terrena, a do leão, era vermelha e branca.
“Bailando, à destra roda, sobre a via, vinham três damas…”
Purgatório- Canto XXIX – (vs. 121,122)
Ao lado da roda direita do carro, dançando, três damas que representavam as virtudes teologais – Caridade, vermelha; Esperança, verde e a Fé branca (curiosamente as três cores que formam a bandeira da Itália). Ao lado esquerdo quatro damas vestidas de púrpura também dançavam e significavam as quatro virtudes cardiais – a Prudência, a Justiça, a Temperança e a Fortaleza.
Seguiam o cortejo, lentamente, dois velhos, um, talvez, médico (Hipócrates?) e o outro, provavelmente, um soldado, embora há quem veja aí representados os apóstolos Pedro e Paulo. Ainda há outros quatro humílimos não identificados pelos exegetas de Dante, e um quinto dormindo, mas com a aparência iluminada.
Todos tinham as mesmas vestimentas e diferiam daqueles vinte e quatro varões apenas por não carregarem coroas de lírio na cabeça, mas coroas de rosas vermelhas e de flores brancas, causando a impressão, em quem os observasse de longe, de estarem com as cabeças envoltas em chamas.
Um trovão os faz parar bem na frente do poeta. Estamos no Canto XXX e ali Dante vê, tomado de emoção, sua amada Beatriz. Ele procura Virgílio em vão, e à visão daquela mulher, que lhe aparece velada, vestida em mantos de três cores, vermelha, verde e branca, como a atual bandeira da Itália o faz experimentar as mesmas sensações de quando a vira pela primeira vez e ele chora copiosamente, por dois motivos, pois também Virgílio havia sumido definitivamente.
Ela, porém, pede-lhe que não chore por isso e lhe dirige severas críticas. “Olha-me bem! Eu sou, eu sou Beatriz. Julgas-te digno de ascender ao Monte? Não vês que o ser humano é, aqui, feliz?” Dante, novamente chora, desta vez pela reprimenda que lhe faz a dama de seus sonhos. Ela, dirigindo-se aos anjos ali presentes explica-lhes o porquê de tão severas críticas nos versos seguintes: “…foi ele desde a extrema juventude, dotado de pendor maravilhoso para as obras do bem e da virtude. Mas tanto mais o solo é vigoroso mais se apresenta, quando mal semeado, inculto e estéril, áspero e espinhoso.” Beatriz parece reclamar que Dante dela se esquecera tão logo ela morrera.
No Canto XXXI Beatriz continua a criticar Dante e diz-lhe que não é mais uma criança. Ele não suporta a dor causada pela crítica e pelas lembranças de seus erros e um anjo/ninfa, Matelda, o toma já desmaiado em seus braços e junto com outras damas o levam para dentro do Rio Letes e dão-lhe um banho, como se o batizassem e o livrassem de todos os males. Depois solicitam a Beatriz que olhe para ele com sua luz e lhe dê um sorriso com sua graça – ela que mantém o olhar fixo no carro que a trouxe e de onde resplandece a figura do Grifo. Ao atender ao pedido das suas damas de companhia, sorrindo e olhando para Dante, um êxtase se apodera do poeta tornando-o alheio ao resto do cenário. Afinal, ela já havia morrido há dez anos!