Ao voltar a si, caminhando ao lado de Virgílio, percebe que uma nuvem densa se forma à sua frente e tudo se esconde em brumas. Antes um Anjo de luz exuberante mostra-lhes o caminho e fala a Dante em latim – “beatis misericordes!” – “felizes os que perdoam!” – palavras encorajadoras para o poeta que deixava o terraço dos invejosos. Canto XIV e os poetas adentram a nuvem de fumo dos iracundos “e me turbava o olhar, algo encoberto” e uma alma vem ter com eles e explica a Dante sobre a corrupção que reina no mundo e os porquês desta – ao que se deve atribuir a causa de tal corrupção: a um inevitável desígnio dos céus ou a desídia dos próprios homens? “Pois que de bem o mundo está deserto, como assegura a tua afirmação, pela malícia e o vício recoberto,…” E ambos, Dante e a alma, discutem longamente sobre este assunto – e dois tercetos (seis versos), neste canto, são absolutamente capitais para o entedimento da profundidade dos assuntos políticos retratados no poema.
Isso se deve, obviamente, à posição que Dante já ocupava na alta administração da cidade de Florença, como um principal, e ao seu grande conhecimento de filosofia e religião, além, claro, de sua fina percepção do que era a humanidade. “Vós, os viventes, com simplicidade, julgais estar aos céus tudo imputado, por força de fatal necessidade. Mas com isto se vira erradicado o livre-arbítrio, e senso não faria haver-se o mal punido e o bem premiado.”
No Canto XVII, os dois poetas chegam à escada que permite o acesso à plataforma superior e param, pois a noite os impede de continuarem. Aqui é o quarto terraço do Purgatório, onde se redimem os que foram pouco diligentes em obras de fé e caridade, a prática do bem e da virtude, e ali Virgílio, como fizera no Inferno (Canto XI), explica a Dante como se acham distribuídas as almas nos sete giros, segundo a natureza de seu pecado. Um Anjo toca-lhe a testa e apaga o terceiro P dos sete pecados capitais – o que o livra da ira – com uma saudação em latim: “Beati pacifici” – “felizes os que têm paz”.
O poeta sente que suas pernas fraquejam, e assim, sendo obrigados a parar, embora com a mente aberta, Dante ouve de Virgílio uma teoria de cunho francamente aristotélico sobre o equilíbrio entre o bem e o mal, segundo a qual não se podem compreender o Criador e criatura sem o dom natural do amor e a tendência para praticar e querer o bem, e que, nesta tendência, concorrem dois aspectos – um de ordem natural – posto que foi criado por Deus – , e que é, ao mesmo tempo, produto da vontade humana, apta a buscar a felicidade e a discernir sobre o que é o bem.
É uma longa sequência poética em que se dá continuidade à discussão sobre a corrupção que atormenta os homens, assim expressa no poema – “(L’amore) natural é infenso a erro ou torpor, mas o outro se defrauda em seu efeito, ou por excesso ou falta de vigor”. Ou seja, L’amore de ânimo, aquele que depende da vontade, e por conseguinte, susceptível de erro quando tende ao objeto ou com exagerado vigor ou sem o necessário entusiasmo. E, com efeito, a discussão se estende ao Canto XVIII, na entrada do quarto terraço, em que se vêem as almas dos omissos, dos negligentes e tardios na prática do bem e da virtude, em correria, tentando recuperar o tempo perdido.
Aqui, Dante adormece, mas desperta com a balbúrdia feita pelas almas que se purgavam, e Virgílio procura descobrir onde fica a saída daquele terraço. “Ó almas, que pelo fervor presente, procurais apagar a antiga imagem da culpa vossa omissa e negligente, eis que um vivo que chega a esta paragem e quer subir tão logo surja o dia: mostrai-nos, pois, o jeito da passagem.”
Canto XIX – Neste canto Dante narra seu sonho com uma sereia sedutora que subitamente se mostra ser uma mulher coxa, vesga, gaga, horrível – personificação da tentação que leva o homem à luxúria, avareza e gula, que se desvenda quando uma outra mulher, de aspecto santo e honesto – a virtude – rasga-lhe o vestido e deixa à mostra o ventre de onde emana um cheiro pestilento cuja intensidade desperta o poeta. Logo depois um Anjo roça-lhe a testa com a ponta da asa e apaga outro P de sua testa, exclamando: – “Qui lugent”, murmurou, “abençoados ao supremo consolo ora rumando.” (Qui lugent – latim : os que choram, os que sofem).
Dante acabara de se livrar do pecado da acídia (s.f. Gr. akedia – Em Teologia: Um fastio espiritual que a alma tem para o exercício das obras virtuosas, especialmente para as causas do culto divino e comunicação com Deus – sintoma frequente entre frades moços nos mosteiros da idade média).
Livre do encanto Dante se lança, como um falcão, ele diz no poema, em direção ao quinto giro do Purgatório. Lá chegando percebe as almas deitadas de bruços com os olhos presos ao chão – são os avarentos, aqueles que se inclinaram exclusivamente aos prazeres materiais. “Anima mea adhesit pavimento” (Versos de Davi: Minha alma voltou-se para o chão) soluçavam, ali, à voz sentida, de que mal se colhia entendimento.” Lá, deitado e com os olhos colados ao chão, estava o Papa Adriano de Lavagna V (cujo papado durou 38 dias), que aponta a Dante a saída pela direita e pede-lhe que avise a sua sobrinha, ainda viva, para que ore por ele, abreviando-lhe as agruras do purgatório rumo à salvação.
No Canto XX, ainda no quinto terraço, entre os avarentos estendidos no solo, o poeta vê Hugo Capeto, que origina uma das linhagens dos reis de França e que lhe conta a história de sua dinastia e faz vaticínios. Repentinamente um abalo sísmico, seguido de um enorme grito em coro e em uníssono – “Gloria a Deus” – sacode o monte do Purgatório deixando Dante curioso e assustado, afinal o chão tremera sob seus pés.